
O "Ricardo" deu entrada no serviço há uns 2 meses atrás. Vitima de uma queda por acidente de trabalho, vinha em estado grave, ventilado, com valores de pressão intracraniana sempre instaveis e fractura de uma das vértebras dorsais.
Existem casos que nos tocam em particular e sendo um rapaz de 18 anos eu sabia que este seria um deles. Felizmente nos primeiros tempos, só fiquei com ele uma vez o que me permitiu ter um certo distanciamento emocional, mesmo quando auxiliava na prestação de cuidados.
O "Ricardo" felizmente foi melhorando,as pressões intracranianas estabilizaram, começou a acordar do coma, a respirar por ele e a coluna vertebral ficou estável.
Nas últimas semanas ele tinha para nós um olhar bastante presente, mas não havia forma de comunicar com ninguém.
A semana passada colocámos uma televisão para ele se entreter a ver os jogos de futubol, e então aí ele deu o primeiro sinal de que nos entendia. Na altura em que o "Tide" falava mal do Benfica, ele levantou lentamente o braço e de uma forma muito expressiva dobrou os dedinhos fazendo um gesto menos próprio para mandar o "Tide" para um determinado sitio.
Após este momento, não mais voltou a expressar qualquer tipo de opinião ou outra coisa qualquer.
Nesse dia, andei também eu de volta dele bastante tempo, ou porque se atravessava na cama, ou porque a televisão deixava de dar e como é obvio sempre a tentar falar com ele. Pensei que talvez ainda ninguem lhe tivesse dito onde estava e porque estava ali (o que é natural...as rotinas as vezes consomem-nos) ou porque tinha talas nos braços.
No dia seguinte, na distribuição de doentes, calhou-me ficar com ele e foi sem duvida dos melhores turnos que tive.
No inicio do turno ele estava taquicardico fui ter com ele e perguntei-lhe se estava com dores, como é obvio não me respondeu...então disse para fechar os olhos se tivesse dores (o que frequentemente lhe costumavamos dizer ma sem qualquer sucesso) e ele fechou nitidamente os olhos. Fiquei parva, completamente parva. Expliquei-lhe que lhe ia buscar um medicamento e perguntei-lhe o que lhe doia. Ele pegou nitidamente na minha e levou-a a barriga dele. E eu não podia acreditar naquilo que estava a acontecer. Após a medicação ter corrido, perguntei-lhe se ainda tinha dores e ele acenou negativamente com a cabeça. E eu só pensava...ninguém vai acreditar em mim.
Durante a noite ele acordava sistemáticamente com os barulhos provenientes de uma doente ao lado, que até a mim me afligia. Estive com ele e passei-lhe a mão pela face e pelos braços ( e continuo a achar que a teoria de dar a mão é tão valida quanto outras, não me venham com tretas porque se eu estiver numa cama de um hospital, com barulhos que me assustam por todo o lado, vou querer que alguém esteja ao meu lado com tudo o que tiver a direito para me tirar o medo, incluido de mão dada).
Na noite seguinte não voltei a ser a sua enfermeira, mas a ligação emocional que no inicio não a queria ter já cá estava, graças aos dias anteriores. Ajudei a minha colega nos cuidados de enfermagem que ela precisava e voltei a meter-me com ele.
Tinham-lhe tirado o cateter venoso central e colocado duas vias perifericas num dos braços ele olhava muito fixamente para aquilo. Então expliquei-lhe o que era aquilo e porque estava ali, com certeza que ninguém ainda lhe tinha dito ( as rotinas são assim mesmo...pica veia e segue caminho), então ele levantou o braço, apoiou o cotovelo à grade da cama, onde eu também tinha os meus braços apoiados e com um gesto lento passou-me ele a mão pelo cabelo várias vezes. Voltei a ficar sem palavras...acho que ainda agora não as tenho.
Expliquei-lhe que possivelmente hoje ia para um hospital mais perto de casa (as rotinas às vezes fazem com que nos esqueçamos dos doentes, o que é no minimo ridiculo, mas acontece...e acontece com todos)
O "Ricardo" vai ficar assim nos doentes a não esquecer, com uma bela lição...não podemos desistir deles.
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